Dez anos depois do incêndio, a série refaz, passo a passo, a sucessão de acontecimentos que levaram à morte de jovens, a dor das famílias e dos sobreviventes e o processo judicial, trazendo imagens inéditas.
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Responsável pela série, o gaúcho de Passo Fundo, Marcelo Canellas morou por muitos anos em Santa Maria, por isso, tem um envolvimento pessoal com a cidade e o incêndio.
Em entrevista ao g1, Canellas explicou que a ideia inicial era construir a série com o julgamento dos quatro réus pelo incêndio como pano de fundo. Mas, com a anulação do júri, a narrativa precisou ser conduzida de outra forma.
"Nós remodelamos a série e contemplamos essa ideia de que esse processo é um processo sem fim. Esse processo é um processo que revitimiza o tempo todo. É um processo que impõe sofrimento o tempo todo. E inclusive na trajetória da luta das famílias por justiça, porque o documentário é basicamente a história da luta por justiça de um grupo de pais, mães e sobreviventes", conta.
Marcelo Canellas e equipe gravam em frente ao local onde funcionava a Boate Kiss — Foto: Divulgação/Globo
O julgamento de quatro réus pelo incêndio na Boate Kiss ocorreu entre os dias 1º e 10 de dezembro de 2021. Marcelo de Jesus dos Santos, Luciano Bonilha Leão, Elissandro Spohr e Mauro Londero Hoffmann foram condenados a penas que variavam de 18 a 22 anos de prisão. Porém, os advogados de defesa dos quatro alegaram nulidades no processo e a justiça determinou a anulação. Uma nova data ainda deve ser marcada.
"O judiciário não deu conta de dar uma resposta rápida para essas pessoas. Isso fica claro e a gente mostra isso no documentário. Porque não é possível que passados nove anos se faça um julgamento e que você chega pras famílias e diz pra elas: 'não valeu', e vocês vão esperar mais não sei quanto tempo. Tudo isso o documentário mostra, essa evolução do transcorrer das lutas e das famílias até um final sem final", diz Canellas.
"Eu acho que Santa Maria e a tragédia é muito o espelho do nosso país. É muito a maneira como a gente enfrenta as nossas dores, as nossas tragédias. São tragédias recorrentes, que se repetem e a vocação brasileira, de jogar os responsáveis pra debaixo do tapete, persiste."
A produção da série documental durou cerca de um ano e meio.
'Nunca fiz nada que tivesse tanto a ver comigo'
Canellas fez faculdade na mesma universidade em que muitos jovens que morreram no incêndio estudaram, a UFSM. Ele diz que foi na cidade que se formou como pessoa.
"Esse meu passado universitário em Santa Maria é uma das razões pelas quais eu acho que nunca fiz nada que tivesse tanto a ver comigo quanto esse documentário. Já são 35 anos de profissão mas eu posso te dizer que eu nunca me identifiquei tanto com as circunstâncias de um fato quanto me identifico com esse fato. Esse meu envolvimento ultrapassa o envolvimento de repórter e agora como diretor do documentário é de cidadão de Santa Maria, por conta da adoção e da minha relação afetiva com a cidade", diz.
Por ter participado ativamente da vida universitária, presidindo diretórios acadêmicos e na vida noturna, o jornalista diz que muitos vezes se viu nos jovens que morreram no incêndio da boate.
"Todo final de semana nesses cinco anos eu acho que se falhou um ou dois, é muito. A gente ia pra uma coisa que tinha na época, que durou muitos anos, que era a boate do DCE. Funcionava na sede da casa do estudante, no subsolo. Tinha só uma portinha, não tinha janela e eram centenas de estudantes que se amontoavam lá dentro. Eu quando lembro disso, daquele ambiente insalubre, sem saídas de emergência, sem nada, eu evidentemente me vejo nos garotos da Boate Kiss. É impossível não pensar nisso."
Segundo Canellas, o local funcionou durante décadas e só foi fechado meses antes do incêndio da Kiss.
Marcelo Canellas entrevista os irmãos sobreviventes da tragédia Delvani Brondani Rosso e Jovani Brondani Rosso — Foto: Divulgação/Globo
Sociedade aprendeu?
Durante a entrevista, o jornalista fez duras críticas à sociedade, ao poder público e a como os responsáveis foram punidos após a tragédia de Santa Maria.
"O fato de a gente repetir tragédias sem aprender com os erros. E é muito impressionante que esse movimento de negação e tentativa de apagamento do que aconteceu e silenciamento das pessoas, ela vinha com tanta força. E é uma característica nossa isso".
O documentário compara o incêndio da Kiss com a tragédia da Boate República Cromañón, em Buenos Aires. No ano de 2004, 194 pessoas morreram.
"Eu fui a Buenos Aires e mostrei o que aconteceu. É uma repetição, é quase um passo a passo, um manual de como se constitui uma tragédia. A mesma coisa, um lugar superlotado, mais gente do que devia ter, uma banda tocando, um artefato pirotécnico, espuma que não devia ter, faltava saída de emergência. Tudo a mesma coisa, tudo".
Para ele, a diferença da forma como a Argentina lidou com a tragédia, para o Brasil, é gritante.
"Lá as pessoas foram presas, muitas pessoas, servidores da fiscalização foram presos, bombeiros foram presos, e o prefeito de Buenos Aires, da capital da Argentina, foi destituído do cargo por um julgamento político, por ter permitido que aquilo acontecesse. Não aconteceu nada disso em Santa Maria. E isso é motivo da indignação dos pais, não foi à toa que eles entraram em choque com o MP, quando o MP decidiu denunciar no processo criminal por dolo eventual, apenas quatro pessoas, quando a polícia no inquérito havia feito 28 apontamentos de responsabilidade. Eu acho que o documentário acaba sendo também um grande retrato de como a sociedade brasileira e o estado brasileiro lidam com tragédias dessa dimensão".
Marcelo Canellas e os presidentes da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria: Sérgio Silva, Adherbal Ferreira e Flávio José da Silva — Foto: Divulgação/Globo
Momentos mais marcantes
Canellas acompanha a tragédia da Boate Kiss desde o ocorrido. São 10 anos entrevistando familiares, sobreviventes e envolvidos. O jornalista diz que, com muitos, criou inclusive uma relação de amizade. Pra ele, não há como elencar um momento mais marcante na cobertura nesses 10 anos, mas todo depoimento de sobrevivente é impressionante.
"Sempre que um sobrevivente fala, é absolutamente desconcertante. Quando um sobrevivente reconta essa história, da sua própria voz é de uma eloquência absurda. A capacidade que os sobreviventes tem de trazer à luz o que aconteceu, foi o que mais me chamou atenção nesses 10 anos de cobertura".
Apesar de uma década de sofrimento, principalmente por parte de familiares que perderam entes queridos, falar sobre a tragédia permite que a memória seja respeitada.
"Eu acho que tem uma parte que quer esquecer, mas eu acho que a maioria absoluta dele não quer esquecer. Porque o esquecimento não supera a dor, o esquecimento é mais uma forma de imposição de sofrimento. É preciso lembrar e respeitar a memória de quem morreu pra que isso não se repita. Eles repetem isso como mantra, para que não se repita, para que não se repita, para que não se repita. Pra lembrar para que não se repita. E eles vão continuar lembrando por mais incômodo que seja", finaliza.